1. Introdução
A indústria fumageira brasileira está fortemente concentrada no Sul do País e, mais especificamente, na região do Vale do Rio Pardo, centro do estado do Rio Grande do Sul. Historicamente, a região é caracterizada pela sua dependência econômica da cadeia produtiva do tabaco, tanto em função dos milhares de agricultores familiares que produzem as matérias-primas quanto pelas indústrias multinacionais que beneficiam e exportam o produto para diversas partes do mundo. O sistema integrado de produção, estabelecido há décadas, oferece garantia de comercialização da produção aos agricultores, ao mesmo tempo em que coloca as indústrias em um papel central na cadeia, com forte controle da produção e das práticas utilizadas pelos agricultores integrados. Apesar do aumento das campanhas antitabagistas e da adesão brasileira a uma convenção internacional de controle do tabaco, a cadeia permanece como a principal fonte de renda na região e visualiza um cenário positivo, com o aumento do consumo de cigarros em nível mundial nos próximos anos (Mackay e Eriksen, 2002).
No entanto, empresas fumageiras fazem parte de uma cadeia produtiva que gera bens de consumo potencialmente danosos à saúde humana – o cigarro e seus derivados. Nas últimas décadas, a atuação dessas empresas vem sendo acompanhada atentamente por governos, entidades representativas e organizações não-governamentais, fiscalizando suas práticas de gestão e gerando pressões de distintos grupos de stakeholders. Existem poucos segmentos em que os grupos de influências são tão claramente perceptíveis quanto na cadeia do tabaco. Controlada por grandes empresas multinacionais, com espaço reduzido para empresas locais de pequeno porte, a cadeia é influenciada por um conjunto de stakeholders pró-tabaco (atores que dependem do produto para sua sustentabilidade econômica) e um conjunto de stakeholders anti-tabaco (que combatem a cadeia e os produtos dela originados).
As particularidades do setor fizeram com que essas empresas adotassem um amplo conjunto de práticas de gestão ambiental e responsabilidade social, tanto em suas estruturas organizacionais internas quanto em relação aos produtores rurais, fornecedores de seu principal insumo. Muitas dessas práticas visaram a diminuir as críticas relacionadas, por exemplo, aos impactos ambientais da produção e secagem do tabaco, os efeitos sobre a saúde dos agricultores e a possibilidade de utilização de mão-de-obra infantil no campo, argumentos utilizado por grupos anti-tabaco para combater a cadeia.
Este artigo analisa a influência dos stakeholders ligados ao tabaco sobre as práticas de responsabilidade ambiental da cadeia produtiva fumageira no Sul do Brasil. Os resultados mostram que stakeholders regulatórios têm grande influência sobre as decisões da cadeia, mais do que clientes ou fornecedores. Através de análise documental verifica-se que a grande maioria das ações, divulgadas pelas empresas como ações proativas de responsabilidade ambiental, são resultado de pressões realizadas pelos stakeholders. Embora as relações desses stakeholders se configurem como uma rede, as ações são geralmente isoladas e não aproveitam as potencialidades que ações em rede poderiam proporcionar. Além desta introdução, o artigo está estruturado da seguinte forma: na primeira seção é apresentada a teoria dos stakeholders, com destaque para a teoria de rede delineada por Rowley (1997); a segunda seção descreve conceitos e aspectos relacionados a responsabilidade ambiental nas organizações. Os aspectos metodológicos utilizados na pesquisa são relatados na terceira seção, e os resultados são apresentados na quarta seção. A quinta seção consiste em uma discussão sobre as influências dos stakeholders para a adoção de práticas de gestão ambiental na cadeia do tabaco. A seção final do artigo apresenta considerações do estudo, limitações e sugestões de estudos futuros.
2. A Teoria dos Stakeholders
A origem das discussões sobre stakeholders organizacionais pode ser atribuída ao trabalho seminal de Freeman (1984). Esse autor denominou de stakeholder qualquer indivíduo ou grupo que pode afetar ou ser afetado pelos objetivos da firma. Posteriormente, outros autores ampliaram o conceito, introduzindo a ideia de que são stakeholders todos aqueles que têm reivindicações legítimas sobre a firma (Rowley, 1997).
A lógica subjacente é que qualquer organização é cercada por grupos e indivíduos cujas expectativas precisam ser atendidas. Exemplos de stakeholders organizacionais são os proprietários, empregados e associações comerciais, clientes, parceiros de negócios, fornecedores, competidores, governos e reguladores, o eleitorado, organizações não-governamentais, grupos de pressão e influência, bem como comunidades locais e internacionais.
Deste modo ateoria dos stakeholders, reivindica que, independente de qual seja o objetivo final de uma corporação ou de outra forma organizacional, gestores e empreendedores precisam levar em conta os interesses legítimos de grupos e indivíduos que podem afetar e ser afetados por suas atividades (Donaldson e Preston, 1995). Assim, há um reconhecimento crescente por parte das organizações que alguns stakeholders têm influência significativa sobre elas, à medida que há mais informações disponíveis sobre as ações das organizações e os impactos das atividades sobre a comunidade. Além disso, os stakeholders vêm demandando padrões mais altos de comportamento das organizações, e a legitimidade de suas demandas é cada vez mais reconhecida pelo governo, sociedade civil e órgãos reguladores. Cabe às organizações reconhecer os conflitos de interesse entre os grupos e atuar de maneira a atender seus interesses da maneira mais satisfatória (AA1000). De acordo com Freeman et al. (2004), a teoria dos stakeholders está articulada em duas questões principais: qual é o propósito da firma? e, qual a responsabilidade da gestão com os stakeholders? A primeira questão faz com que os gestores se perguntem sobre o valor que a firma gera e o que traz os principais stakeholders para junto da firma. A segunda questão exige que os gestores pensem sobre como fazem negócios, que tipo de relacionamentos eles querem e necessitam criar, em vista de seus propósitos. Ainda segundo Freeman et al. (2004), a teoria dos stakeholders começa com o pressuposto de que ‘valores’ são necessariamente e explicitamente uma parte do negócio, e rejeita a tese de que ética e economia podem ser separadas. A visão da firma com objetivo único (econômico) distingue as consequências econômicas das consequências éticas; os direitos dos investidores são colocados acima de todos os outros. Afirmar que a gestão deve se preocupar com os direitos dos stakeholders não implica em ignorar os investidores, mas colocá-los como um dos grupos que é influenciado pela organização. Ainda segundo os autores, criar valor aos stakeholders implica indiretamente na criação de valor também para os shareholders das empresas.Neste sentido, de acordo com Donaldson e Preston (1995), a visão tradicional concebia as organizações como sistemas input-output, onde a firma é vista como uma caixa-preta que produz resultados para os consumidores, remunerando os fornecedores de inputs ao preço de mercado. Em uma versão marxista-capitalista do modelo, o objeto do jogo é meramente produzir resultados para os investidores, e não para os consumidores. No entanto, no modelo de stakeholders, todas as pessoas ou grupos com interesses legítimos que participam de uma organização buscam obter benefícios e não há prioridade de interesses e benefícios de uns sobre outros.
Segundo Donaldson e Preston (1995) a teoria dos stakeholders difere de outras teorias que abordam o ambiente organizacional pelo fato de pretender, ao mesmo tempo, explicar e guiar a estrutura e a operação da corporação estabelecida. Isto faz com que muitas vezes a organização seja vista como uma entidade através da qual, numerosos e diversos participantes buscam múltiplos propósitos que nem sempre são inteiramente congruentes. Neste sentido é que Rowley (1997, p. 895) afirma que “o principal objetivo na teoria dos stakeholders é explicar e prever como as organizações funcionam com respeito à influência destes”. Esta ideia é complementada por Frooman (1999), quando este indica que um dos objetivos centrais da teoria dos stakeholders tem sido ajudar os gestores a entendê-los e gerenciá-los de forma estratégica.
Diante de uma diversidade de abordagens existentes que conceitualizam a teoria dos stakeholders, Donaldson e Preston (1995) buscam classificá-la em três aspectos diretamente relacionados entre si: o aspecto descritivo/empírico, quando a teoria é utilizada para descrever e explicar características e comportamentos da empresa e as suas relações com os stakeholders, ao longo do tempo; o aspecto instrumental quando a teoria é utilizada em conjunção com os dados descritivos buscando identificar as conexões ou as deficiências das conexões entre a organização e seus stakeholders; e por fim, o aspecto normativo, utilizado para interpretar a função que a corporação possui frente à sociedade e os seus objetivos, em termos filosóficos e morais.
2.1 A rede de stakeholders da organização
Partindo das ideias centrais de Freeman (1984) sobre stakeholders organizacionais, Rowley (1997) propõe que somente identificar os stakeholders e os tipos de influências que eles exercem sobre as organizações não torna possível predizer o comportamento organizacional, visto que cada empresa possui um conjunto diferente de grupos de interesse, cujas relações formam padrões únicos de influência. Isto é, as empresas não respondem a cada stakeholder individualmente, mas respondem à interação das influências múltiplas desses grupos. Portanto, compreender como as organizações respondem aos seus stakeholders requer uma análise dos relacionamentos múltiplos e interdependentes desses grupos.
Rowley (1997) sustenta que o modelo de Freeman (1984) conceitualiza a organização como o centro da configuração de stakeholders e considera apenas as relações envolvendo a organização focal. Esse modelo não possibilita predizer como a organização responderá às demandas dos stakeholders. A Figura 1 é representativa do modelo em que a organização é vista como o ator central e que possui relações diádicas com cada um dos seus stakeholders. O modelo de rede, proposto por Rowley (1997) pode ser observado na Figura 2: a organização é cercada por stakeholders que possuem relacionamentos entre si e, portanto, afetam-se mutuamente e influenciam a organização a que estão ligados. Mais do que isso, Rowley (1997) argumenta que a organização não necessariamente é o centro da rede, mas ela própria também é stakeholder de outras organizações e está inserida em um contexto social (Figura 2). A posição da empresa na rede é um importante fator determinante de seu comportamento.
Figura 1: Relações entre stakeholders
Fonte: Rowley (1997)
Figura 2: Rede de stakeholders
Fonte: Rowley (1997)
A densidade da rede e a centralidade da organização focal nessa rede são fatores-chave para determinar as respostas da organização às demandas dos stakeholders. Em redes altamente conectadas, o fluxo de informações e normas é mais rápido e fácil, e tende a ocorrer um maior compartilhamento de expectativas comportamentais entre os atores. Uma rede densa amplia a capacidade dos stakeholders de monitorar eficientemente as ações da organização focal. “A combinação de expectativas compartilhadas, a facilidade de troca de informações entre stakeholders e o potencial de formação de coalizões, características de redes densas, tendem a gerar pressões fortes e unificadas e levar as organizações (focais) à conformidade” (Rowley, 1997, p. 898).
A centralidade refere-se à posição da organização focal em relação aos demais stakeholders de sua rede. A lógica é que atores com diversas conexões terão acesso a fontes alternativas de recursos e informações. É a centralidade que determina o acesso independente da organização a outros pontos da rede. “A extensão na qual uma organização age como um intermediário entre seus stakeholders é um fator que influencia significativamente o quanto essa organização vai resistir às pressões deles” (Rowley, 1997, p. 900). A centralidade vai determinar a capacidade da organização de controlar o fluxo de informações, diminuindo a capacidade de articulação da sua rede de stakeholders. |