Vol. 38 (Nº 55) Año 2017. Pág. 30
SCATOLIN, Henrique Guilherme 1; CINTRA, Elisa Maria de Ulhoa 2
Recibido: 26/08/2017 • Aprobado: 05/09/2017
2. O contexto anterior a Notas sobre alguns mecanismos esquizóides
3. Meados da década de 40: a posição esquizo-paranoide e o superego retaliativo
4. Década de 50: os estágios iniciais da formação do superego
5. Os objetos danificados, o superego invejoso e as deflexões do objeto bom e mau
6. Década de 60: do caráter primitivo ao seu estado mais ameno
RESUMO: O presente artigo tem como objeto de estudo o superego na obra de Melanie Klein. Com base em uma revisão bibliográfica em suas obras no intervalo entre 1945 até 1963, o autor propõe a seguinte problemática de pesquisa: como podemos compreender a formação do superego na obra de Melanie Klein a partir dos seus estudos sobre a posição esquizo-paranoide? Como resultado é ressaltado que as primeiras introjeções do seio bom e mau fundamentam o superego, influenciando o desenvolvimento do complexo de Édipo, uma vez que a origem desta instância antecede alguns meses o início deste complexo. Há no superego figuras danificadas e queixosas, o aspecto de amor e de admiração aos pais, como também as figuras aterrorizadoras, ou seja, o superego adquire qualidades protetoras, como também ameaçadoras. Como conclusão, o artigo aponta que no núcleo do superego há a internalização de um seio danificado, temido, como também um seio que satisfaça a criança e que a auxilia. As figuras mais primitivas, aterrorizantes, não estão na etiologia do superego, mas estão presentes no inconsciente mais profundo, permanecendo à margem do desenvolvimento normal. |
ABSTRACT: This paper study object is the superego in the work of Melanie Klein. Based on a literature review in her works between 1945 and 1963, the author proposes the following research problems: how can we understand the formation of the superego in the work of Melanie Klein from her studies on the schizo-paranoid position? As a result it is pointed out that the first introjections of the good and bad breast are the foundation of the superego, influencing the development of the Oedipus complex, since the origin of this instance precedes some months the beginning of this complex. In the superego there are damaged and complainant figures, the aspect of love and admiration to parents, and also the terrifying figures, that is, the superego acquires protective qualities, as well as threatening. As a conclusion, the article points out that in the superego there is an internalization of a damaged, feared breast, and also a breast that satisfies the child and helps her. The more primitive, terrifying futures are not in the etiology of superego, but are present in the deepest unconscious, remaining on the margin of normal development. |
Na década de 40, Melanie Klein estava no apogeu da sua teoria, momento este que tinha publicado vários artigos que possibilitavam uma singularidade na leitura de suas contribuições à psicanálise freudiana, criando uma teia de conceitos única e solidificando a sua herança na Inglaterra. Já havia publicado artigos como o Amor, Culpa e Reparação (de 1937) e o complexo de Édipo à luz das ansiedades arcaicas (de 1945). A sua leitura sobre o superego criava um teor único a partir da década de 30, uma vez que o superego começava a se transformar na consciência propriamente dita, sendo o grande causador do sentimento de culpa e valores de sentimento social. A tirania desta instância, que esteve presente na década de 20 e 30 em sua obra, começa a dar espaço para comentários de suavização da mesma, momento este em que um possível ataque poderia desencadear o movimento de reparação. Essa é uma herança teórica muito presente a partir do seu texto Uma Contribuição á Psicogênese dos Estados Maníacos - Depressivos. Caminhamos onze anos e Klein publica Notas sobre Alguns Mecanismos Esquizóides, em 1946. A partir deste contexto de 1946, as luzes e o holofote recaem sobre os primeiros meses de vida, enfocando os mecanismos de cisão e idealização tão comuns na posição esquizo-paranoide.
A partir deste contexto, este artigo lança a seguinte problemática: como podemos compreender a formação do superego na obra de Melanie Klein a partir dos seus estudos sobre a posição esquizo-paranoide? Para este estudo, este artigo irá recorrer às contribuições de Klein a partir dos meados da década de 40, especificamente de 1945, uma vez que a conjuntura já estava preparada para a publicação do artigo Notas Sobre Alguns Mecanismos Esquizóides.
Para uma melhor compreensão da problemática deste artigo, vamos à conjuntura da década de 40, enfocando a etiologia do superego.
Segundo Klein “o primeiro objeto introjetado, o seio da mãe, forma a base do superego” (1945, p. 461). Como a relação com o seio da mãe precede a relação como pênis do pai, a relação com a mãe introjetada vem a afetar todo o curso do desenvolvimento do superego. Muitas das características mais importantes do superego, como as características amorosas ou destrutivas, são frutos dos componentes maternos iniciais do superego.
No deslize do seio para o pênis, podemos encontrar as características sádicas projetadas no seio materno sendo deslocadas para o pênis paterno. Para o menino, a aproximação do pênis de seu pai como uma alternativa para o seio da mãe é primariamente um movimento para a homossexualidade passiva, ao mesmo tempo em que a incorporação do pênis paterno, via oralidade, permite a identificação com este, fortalecendo o caminho rumo à heterossexualidade. O desejo oral de incorporação logo dá espaço para a situação genital, em um desejo de cópula e de receber bebês dele.
Entretanto, a relação com o seio materno denota uma outra relação com a agressividade e com o sentimento de culpa. Na compreensão de Klein (1945), os primeiros sentimentos de culpa, tanto nos meninos quanto nas meninas, tem a sua origem nos desejos sádicos-orais de devorar a mãe, tendo origem no início da infância. A culpa seria a mola que propicia o desenvolvimento e afeta ao seu resultado. Isto significa que ansiedade, culpa e sentimentos depressivos são pilares intrínsecos do desenvolvimento emocional da criança e que estão presentes nas relações de objetos iniciais, que “consistem da relação com pessoais reais e com seus representantes no mundo interior “ (Klein,1945/1996, p. 463).
O superego se desenvolveria a partir da figuras introjetadas, influenciando a relação com os pais e todo o desenvolvimento emocional da criança. Como diz Klein “as relações de objeto e o desenvolvimento do superego estão em interação desde o início” (1945/1996, p. 464). Assim, para uma melhor compreensão desta formação, gostaria de recorrer a um texto clássico da sua obra intitulado Notas sobre alguns mecanismos esquizóides, no qual Klein (1946) mergulha na descrição da posição esquizo-paranoide, trazendo informações relevantes sobre os objetos parciais e os mecanismos de defesa primitivos, como a cisão e a identificação projetiva, realizando um relato bem descritivo dos processos psíquicos dos três primeiros meses de vida.
Na nota do editor inglês é apontado que neste artigo “Klein define [...] as características do ego arcaico, a forma de suas relações de objeto e das suas ansiedades” (1946/2006, p. 17). Neste artigo novas luzes são lançadas para os mecanismos de cisão e projeção, conduzindo ao mecanismo da identificação projetiva, como também uma nova visão para os estados esquizóides, de idealização e desintegração do ego devido às ansiedades arcaicas de cunho paranoide e esquizóide.
Isto significa que “surgem na primeira infância ansiedades, características das psicoses, que forçam o ego a desenvolver mecanismos específicos de defesas específicos” (Klein, 1946/2006, p. 20). Seria na posição esquizo-paranóide que podemos encontrar todos os distúrbios psicóticos. Neste momento, as ansiedades, mecanismos e defesas do ego têm uma relevância sobre todos os aspectos do desenvolvimento emocional, inclusive no desenvolvimento do superego. Mas como que os objetos parciais estariam voltados a esta constituição?
Lembremos que as relações de objeto existem desde o nascimento, sendo o primeiro objeto o seio da mãe. Este poderá ser incorporado como o seio bom – que propicia gratidão – e um seio mau – que propicia frustração. Enquanto que o seio bom estaria voltado as manifestações das pulsão de vida projetadas sobre o seio materno, o seio mau estaria voltado as manifestações da pulsão de morte. Essa cisão ( entre bom e mau objeto) ocasiona em uma separação entre o amor e o ódio. Segundo Klein “desde o início as relações de objeto são moldadas por uma interação entre introjeção e projeção, e entre objetos e situações internas e externas” (1946/2006, p. 21). Seriam estas interações – entre projetar o ódio e internalizar o seio mau e/ou projetar o amor e incorporar o seio bom - que conduzem a formação do ego e do superego arcaico, preparando o terreno para o aparecimento do complexo de Édipo concomitantemente a posição depressiva.
O superego arcaico apresenta uma rigidez no início da sua constituição. Como o que é projetado vem a ser introjetado, posteriormente, pelo bebê, a agressividade se volta contra o ego e o superego da criança. Isto significa que, primeiramente, “o impulso destrutivo volta-se contra o objeto e expressa-se primeiramente em fantasias de ataques sádico-orais ao seio materno, os quais logo evoluem para violentos ataques contra o corpo materno com todos os meios sádicos” (Klein, 1946/2006, p. 21). Esses ataques suscitam os medos persecutórios e as fantasias de retaliação das crianças. Caso os medos persecutórios tornem-se muito freqüentes e intensos no início da vida e o bebê não conseguir elaborar esta posição, a elaboração da posição depressiva ficará comprometida. Este fracasso poderá fortalecer os pontos de fixação para as psicoses graves, como as esquizofrenias.
Para Klein “a necessidade vital de lidar com a ansiedade força o ego arcaico a desenvolver mecanismos e defesas fundamentais” (1946/2006, p. 24). Um mecanismo que o ego lança mão para se aliviar destas ansiedades arcaicas é a projeção. Ao defletir a pulsão de morte para o exterior, a agressividade prende-se ao primeiro objeto externo, o seio da mãe e este é vivenciado como agressão oral, tornando-se o seio mau. Os impulsos sádico-orais voltados ao corpo da mãe dão espaço aos impulsos canibalescos que se intensificam com o início da dentição, mas ao tomar o seio sob prevalência da libido da sucção, resguardando-o dos ataques, este torna-se o seio bom. Assim, há uma separação entre um seio bom e um seio mau no início da fantasia do bebê, mecanismo este conhecido como cisão. Quanto mais o sadismo prevalecer no processo de incorporação do objeto e quanto mais a cisão permanecer, sendo o objeto sentido em pedaços, mais o ego corre o perigo de cindir-se, estimulando as ansiedades paranoides.
Além da cisão, a introjeção e a projeção também estão presentes desde o início da vida. A projeção, ao defletir a pulsão de morte, ajuda o pobre ego a superar a ansiedade, salvando-o dos objetos maus internos. Já a introjeção do objeto bom pode ser usada pelo ego como uma maneira de se aliviar da ansiedade.
Nestes meandros temos os mecanismos da cisão ( como já mencionado acima), a idealização e a negação. Enquanto que na idealização “os aspectos bons do seio são exagerados como uma salvaguarda contra o medo do seio perseguidor” (1946/2006, p. 26), na negação o objeto mau é negado, como também todas a frustrações e maus sentimentos.
Nesta posição é muito comum os ataques ao seio da mãe que evoluem aos ataques do corpo materno, momento este em que o corpo passa a ser uma extensão do seio. Para Klein:
Os ataques à mãe, em fantasia, seguem duas linhas principais: uma é a do impulso predominantemente oral de sugar até exaurir, morder, escavar e assaltar o corpo da mãe despojando-o de seus conteúdos bons [...]. A outra linha de ataque deriva dos impulsos anais e uretrais e implica a expulsão de substâncias perigosas (excrementos), do self para dentro da mãe (1946/ 2006, p. 27).
Não são apenas partes más do self do bebê que são expelidas e projetadas, mas também partes boas que são de extrema relevância para o bebê desenvolver relações de objeto e integração do seu ego. Caso a criança venha a empregar estes mecanismos de um modo excessivo, o seu ego poderá empobrecer, uma vez que partes boas da personalidade são sentidas como perdidas, conduzindo ao um enfraquecimento do ego devido as cisões e identificação projetivas excessivas [3]. Assim, a compreensão dos processos de excisão de partes do self para o interior de outros objetos são de extrema relevância para o desenvolvimento emocional normal e patológico.
Se, de um lado, a projeção está voltado ao desenvolvimento emocional primitivo, de outro, a introjeção do objeto bom é uma condição para o desenvolvimento normal, contribuindo para a coesão do ego.
Segundo Klein “no que diz respeito à personalidade normal, pode-se dizer que o curso do desenvolvimento do ego e das relações de objeto depende da medida em que pode ser alcançado um equilíbrio ótimo entre introjeção e projeção” (1946/2006, p, 29). Caso venha a ocorrer a projeção de um mundo interno predominantemente hostil, isso pode ocasionar a internalização de um mundo externo hostil, e vice-versa.
Neste momento reside um contexto fundamental deste artigo: a culpa apresenta os seus resquícios nesta fase, além de estar em pleno vapor na posição depressiva. Para Klein (1946), a cisão violenta do self e a projeção em massa têm como objetivo fazer com que a pessoa que receba esse processo seja sentida como perseguidora. Essa parte destrutiva e odiada do self que é projetada pode ser sentida como um perigo ao objeto amado, dando origem ao sentimento de culpa. Segundo esta autora “a culpa [...] não foi eliminada e a culpa defletida é sentida como uma responsabilidade inconsciente para com aqueles que se tornaram representantes da parte agressiva do self” (1946/2006, p. 31). A culpa seria uma conseqüência destas partes excindidas do self para dentro de uma outra pessoa. Essas excisões do self também explicariam os mecanismos de controle na neurose obsessiva.
Na concepção de Klein, “com a introjeção do objeto completo, ao redor do segundo trimestre do primeiro ano, são dados passos importantes para a integração” (1946/2006, p. 33). Neste momento, a cisão diminui o seu efeito avassalador e o amor e o ódio direcionados ao mesmo objeto não são sentidos mais como separados. Consequentemente há uma intensificação do medo de perda, uma vez que os impulsos agressivos são dirigidos contra o objeto amado.
No momento em que Klein aborda as defesas esquizóides, ela ressalta que “a excisão e a destruição violentas de uma parte da personalidade, sob a pressão de ansiedade e culpa, são um mecanismo esquizóide importante” (1946/2006, p. 39). Ao contrário do que afirmava em 1935, Klein vê a culpa aparecendo em estados transitórios de integração de objetos em relação a objetos parciais. Tal concepção é aprofundada em seu texto de 1948, intitulado Sobre a Teoria da Ansiedade e da Culpa [4].
Klein retoma a concepção de Abraham (1927) sobre a origem da culpa, uma vez que este psicanalista alemão foi o pioneiro em associar a culpa aos desejos canibalescos. Entretanto, coube à Klein reconhecer a importância das fantasias e impulsos sádicos que atingem o seu auge nos estágios mais iniciais de desenvolvimento emocional. Devido aos mecanismos da projeção e introjeção, objetos bons convivem, lado a lado, com os objetos maus, constituindo as fantasias agressivas dos bebês.
Seria esta mesma agressividade que ele projeta “nas figuras internas que fazem parte de seu superego arcaico” (Klein, 1948/2006, p. 49). Na constituição do superego arcaico, esta projeção seria fonte de ansiedade [5], acrescentando a culpa fruto destes impulsos agressivos contra o seu primeiro objeto amado. E ao se aprofundar na análise da ansiedade, Klein (1948) resgata as formas do medo de morte que persiste no inconsciente, ocasionando as várias situações de ansiedade.
Ao resgatar o artigo O Problema Econômico do Masoquismo, Klein (1948) traz a concepção da pulsão de morte e de um trecho de Totem e Tabu, especificamente o “medo de ser devorado pelo animal totêmico [pai]” (1948/2006, p. 51) para uma melhor compreensão do superego arcaico.
O medo de ser devorado pelo pai totêmico, segundo Klein, estaria voltado ao medo do total “aniquilamento do self” (1948, p. 51). Este medo de ser devorado pelo pai tem a sua origem na projeção do impulso agressivo do bebê de devorar os seus próprios objetos de desejo. Em um primeiro momento, o seio materno (e, posteriormente, a mãe como um todo) tornam-se um objeto devorador, estendendo esse medo ao pênis do pai e ao pai.
Se devorar implica a internalização do objeto devorado, isso conduz ao um sentimento dentro do ego que o mesmo possui os objetos devorados (o pai) e devoradores, afetando diretamente a constituição do superego.
Para Klein (1948), o superego é constituído a partir do seio materno devorador, a que se acrescenta o pênis devorador. “Estas figuras internas, cruéis e perigosas, tornam-se os representantes da pulsão de morte” ( Klein,1948/2006, p. 51). Assim, a ameaça ao self, fruto do trabalho da pulsão de morte, está associado à percepção dos perigos provenientes da mãe e do pai internalizados, e equivalem ao medo da morte. Assim, o medo da morte se refugia no medo ao superego.
Se, de um lado, temos um superego arcaico formado por figuras devoradoras, cruéis, terroríficas, de outro, há um outro aspecto do superego arcaico, formado a partir do seio e do pênis bom internalizados. Esta internalização vem a ser sentida “como um objeto interno que nutre e ajuda, e como o representante da pulsão de vida” (Klein, 1948/2006, p. 51). Assim, o seio gratificante e o seio devorador, voraz, formam o núcleo do superego, em seus aspectos bons e maus, respectivamente.
Na compreensão da formação do superego no desenvolvimento emocional arcaico da criança, Segal compreende:
Os objetos ideais e perseguidores introjetados na posição esquizo-paranoide formam as primeiras raízes do superego. O objeto perseguidor é experimentado como punitivo, de forma retaliativa e impiedosa. O objeto ideal, com o qual o ego anseia por identificar-se , se torna a parte ego-ideal do superego, muitas vezes também perseguidora, por causa das altas exigências de perfeição (SEGAL,1964/1975, p. 87)
Na constituição do superego, além da introjeção do seio materno, o segundo objeto introjetado é o pênis do pai, “a que também são atribuídas tanto qualidades boas quanto más” (Klein, 1948, p. 53). O seio mau e o pênis mau tornam-se os protótipos dos perseguidores internos e externos para a criança, influenciando na constituição do superego arcaico e no seu aspecto mau.
A concepção do superego para Klein (1948) é de extrema relevância para a compreensão das manifestações da culpa. Ao contrário de Freud, que apontava uma culpa como herdeiro do complexo de Édipo, Klein (1948) recorre a Abraham (como já citado acima) para explicar essa manifestação a partir da superação dos impulsos canibalescos. Entretanto, ao resgatar o seu postulado sobre a posição esquizo-paranoide, trazendo a ansiedade persecutória e dos impulsos destrutivos a um primeiro plano, Klein (1948) aponta que a ansiedade depressiva e a culpa já estão presentes nos meados desta posição, embora de uma maneira um pouco secundária, durante os estados de integração do ego. Assim, o surgimento da ansiedade depressiva está voltada a relação com os objetos parciais.
Se, de um lado, temos a ansiedade depressiva já presente nos meados da posição esquizo-paranoide, de outro, durante a posição depressiva, a ansiedade persecutória poderá persistir, devido aos aspectos maus do superego, decrescendo quantitativamente no decurso desta posição, possibilitando que a ansiedade depressiva ganhe ascendência sobre a ansiedade persecutória. Klein (1948) ressalta que o surgimento precoce da ansiedade depressiva e da culpa não altera os seus postulados sobre a posição depressiva, uma vez que ambas necessitam que o ego sintetize os impulsos destrutivos e amorosos por um único objeto para que os mecanismos reparatórios venham a um primeiro plano. Assim, a reparação seria uma conseqüência do sentimento de culpa.
Isto significa que a ansiedade depressiva, a culpa e a premência para reparação serão vivenciadas, de uma forma integral, quando os sentimentos de amor por um único objeto predominarem sobre os impulsos destrutivos. Aqui a pulsão de vida, representada pelo amor, ao possibilitar uma maior coesão e integridade do ego pelo objeto total, recorre aos mecanismos reparatórios do ego. Entretanto, na posição esquizo-paranoide, durante os três ou quatro meses de vida, quando aparecem os primeiros vestígios da ansiedade depressiva e da culpa, o processos de cisão dos objetos parciais estão no auge, levando a ansiedade persecutória a interferir neste processo de integração do ego, ocasionando a natureza transitória da ansiedade depressiva, da culpa e da reparação neste estágio do desenvolvimento. Isso justifica o fato que muitos pacientes se queixam da ansiedade persecutória entrelaçados com sentimentos de culpa, uma vez que a “culpa está [...] vinculada à ansiedade (mais exatamente, a uma forma de ansiedade; a depressiva), conduz a tendência reparatória e surge durante os primeiros meses de vida, em conexão com os estágios arcaicos do superego” ( Klein, 1948/2006, p. 59).
Durante a análise, as figuras mais assustadoras, da remota infância da criança, transparecem no superego do paciente. Segundo Klein (1950), durante a análise, “na medida em que as ansiedades persecutórias e depressivas são vivenciadas [...] surge [...] uma síntese maior dos diversos aspectos do superego” (1950/2006, p. 69). Isto significa que, com a diminuição dos processos de cisão entre figuras ideais e persecutórias, a aproximação dos impulsos agressivos e libidinais e a sobreposição do amor em relação ao ódio, a análise deu um grande avanço. Cabe a análise reduzir a intensidade das ansiedades persecutórias (e dos mecanismos de idealização) e das ansiedades depressivas (e das defesas maníacas) do paciente. Isso somente será possível através da análise da sua transferência negativa e positiva, momento este em que o paciente transfere suas primitivas experiências, reforçando as relações de objeto e emoções na figura do analista.
Nesta transferência das primitivas experiências, Klein (1952) resgata a idéia de que, no núcleo do superego, existe tanto o seio bom quanto o mau e que, ao entrar em cena a figura paterna, podemos encontrar o pênis bom e mau neste núcleo também.
Tal concepção é reiterada no texto Influências Mútuas no Desenvolvimento de Ego e Id, de 1952, momento em que afirma: “os objetos internalizados formam também o núcleo do superego, que se desenvolve através dos primeiros anos de meninice, atingindo um clímax no estágio em que [...] o superego passa a existir como o herdeiro do complexo de Édipo” (KLEIN, 1952a/2006, p. 83). O desenvolvimento do superego está entrelaçado aos processos de introjeção e projeção, alcançando o seu auge de desenvolvimento no início do período de latência, momento este em que a relação com os pais é mais segura e que “os pais introjetados aproximam-se mais da imagem dos pais reais” ( KLEIN, 1952a/2006, p. 112).
Quanto o ego e o superego estiverem mais integrados, a demarcação entre consciente e inconsciente estará mais nítida, conduzindo a repressão a desempenhar um papel estratégico entre as defesas. Segundo Klein “um fator essencial da repressão é o aspecto repreensivo e proibitivo do superego, aspecto que se fortalece como resultado do progresso na organização do superego” (1952a/2006, p. 110). Quando este superego estiver mais integrado, este procura manter fora da consciência certos impulsos e fantasias de natureza agressiva e libidinal. A repressão representa um passo a frente das inibições pulsionais e a escolha dos impulsos, fantasias e pensamentos a serem recalcados estão atrelados a dependência do ego para aceitar os padrões dos objetos externos. Essa capacidade “está ligada a uma síntese maior dentro do superego e à assimilação crescente do superego pelo ego” (Klein, 1952a/2006, p. 111).
Ao contrário de que Freud observava (que o superego seria o herdeiro do complexo de Édipo), Klein (1952) associa o superego e a culpa como os fatores determinantes para o declínio do complexo de Édipo. Segundo esta psicanalista “as mudanças na estrutura do superego, que ocorrem gradualmente e que se ligam o tempo todo ao desenvolvimento edípico, contribuem para o declínio do complexo de Édipo no início do período de latência” (Klein, 1952a/2006, p. 111). Com a maior integração do ego, os seus diversos ajustamentos estão diretamente relacionados as modificações das ansiedades persecutórias e depressivas relativas aos pais internalizados, conduzindo a uma maior segurança no mundo interno. Assim, no começo do período de latência, a relação com os pais está mais segura; os padrões, advertências e proibições são aceitos e internalizados , ocasionando a repressão dos desejos edípicos. “Tudo isso representa o auge do desenvolvimento do superego, que é resultado de um processo que abrange os primeiros anos de vida” (Klein, 1952a/2006, p. 112).
Na formação e etiologia do superego, os mecanismos de introjeção e projeção resguardam o seu devido valor, uma vez que a melhora da relação do mundo interno com o mundo externo está voltado a interação entre esses dois mecanismos que são de extrema relevância para diminuir as ansiedades persecutórias e depressivas , conduzindo o ego a assimilar o superego de uma forma mais coesa, aumentando a força de integração do ego.
Entretanto, quando a neurose infantil chega ao fim, momento este em que as ansiedades persecutórias e depressivas são diminuídas e modificadas, há uma propensão ao equilíbrio na fusão das pulsões de vida e de morte, ocasionando importantes mudanças nos processos inconscientes da estrutura do superego e do ego.
Em Sobre a Observação do Comportamento de Bebês, publicado em 1952 e, segundo a nota editorial inglesa, este artigo seria fruto das discussões sobre as Controvérsias de 43-44 (embate entre os freudianos, liderados por Anna Freud; e os Klenianos, liderados por Melanie Klein), Klein (1952) fez um resgate da importância da mãe nos primeiros meses de vida, ressaltando que o bebê apresenta um conhecimento inato inconsciente de um objeto bom e único, ou seja, um conhecimento inato do seio da mãe, como aponta: “o fato de existir no começo da vida pós-natal um conhecimento inconsciente do seio e de o bebê vivenciar sentimentos em relação ao seio só pode ser concebido como uma herança filogenética” (KLEIN, 1952b/2006, p. 144).
As experiências, que culminam na primeira experiência de sugar, dão o início para a relação com a mãe ‘boa’. Seria a partir da primeira experiência de alimentação em diante que a perda e recuperação do seio bom, do objeto amado, torna-se uma parte essencial do desenvolvimento da vida emocional infantil. As atitudes inconscientes da mãe afetam intensamente os processos inconscientes do bebê. Neste meandro, a gratificação está relacionada com o objeto que dá o alimento quanto com o próprio alimento. Já o grau de representantes benéficos ou persecutórios na constelação da inconsciente do bebê será influenciado por suas experiências reais, primeiramente com a mãe (o seio bom ou mau), posteriormente com o pai (pênis bom ou mau) e com outros membros da família. Caso a relação do bebê com a sua mãe venha a ser cercada de perturbações entre os primeiros meses de sua existência, sendo estas de longa duração, isto pode ser uma indicativa de que o bebê não está lidando com as suas ansiedades persecutórias durante a posição esquizo-paranóide. Por outro lado, a posição depressiva culmina na época do desmame, momento este em que os sentimentos depressivos são reforçados pelo desmame. Ou seja, os sentimentos depressivos e o medo de perder a mãe impulsionam o bebê a voltar-se para o pai. Assim, os estágios iniciais do complexo de Édipo e a posição depressiva estão intimamente interligados e desenvolvem-se simultaneamente.
Lembremos o caso Rita [6]. Esta paciente era muito ambivalente com a sua mãe e, ao mesmo tempo, apegada a ela. Rita não gostava de ficar sozinha, demonstrando a ambivalência na separação materna. Segundo Klein “ela tinha uma neurose obsessiva acentuada e às vezes ficava muito deprimida” (1955a/2006, p. 152). Tal como Rita e em Erna, a técnica do brincar possibilitou a Klein (1955a) analisar a agressividade, as fantasias e as ansiedades expressas no brincar dessas crianças. A partir do brincar de Rita, Klein (1955) destaca que “um dos diversos fenômenos que me impressionaram [...] foi a severidade do seu superego” (1955a/2006, p. 161). No brincar, Rita costumava desempenhar o papel de uma mãe severa e punitiva que tratava a boneca muito cruelmente. Klein (1955a) conclui que o superego é algo que é sentido pela criança como “operando internamente de modo concreto” (1955a/2006, p. 161). Este superego consiste de uma variedade de figuras construídas a partir das experiências e fantasias da criança, derivando dos estágios iniciais nos quais ela internalizou seus pais. Assim, a partir do caso de Erna, Klein (1955a) preparou o terreno para abordar a concepção do superego primitivo que é construído quando os impulsos e fantasias sádico-orais estão em seu auge, momento este em que o superego subjaz à psicose. Isto significa que, desde os primórdios do psiquismo, quando iniciam os mecanismos de introjeção e projeção, a constituição do superego se faz presente de uma maneira cruel devido à agressividade [7] internalizada pela criança. Essa crueldade vai se ‘aliviando’ quando o ego vai se tornando mais integrado e mais coeso, e o objeto de amor vai se tornando mais total (e não mais parcial), surgindo os mecanismos de reparação, que seria a “variedade de processos através dos qual o ego sente que desfaz o dano feito em fantasia, restaura, preserva e faz reviver objetos” (Klein, 1955a/2006, p. 162).
Na compreensão de Segal sobre a formação do superego, esta psicanalista aponta:
Nas fases primitivas da posição depressiva, o superego ainda é sentido como muito severo e perseguidor [...], mas, à medida que se estabelece mais plenamente a relação de objeto total, o superego perde alguns de seus aspectos monstruosos e se aproxima mais da imagem de pais bons e amados. Tal superego não é apenas fonte de culpa, mas também objeto de amor, sentido pela criança como um auxiliar em sua luta contra seus impulsos destrutivos (1964/1975, p. 87).
Para Klein (1955a/2006), no núcleo do superego temos a internalização de um seio danificado, temido, como também um seio que satisfaz e que auxilia. No artigo Sobre a Identificação (1955b/2006), Klein (1955b) remonta à introjeção nos estágios mais iniciais para a compreensão desta estrutura, uma vez que os objetos primários internalizados formam a base dos processos de identificação. Assim, os processos de introjeção e projeção possibilitam construir o mundo interno; bem como a imagem da realidade externa do bebê. Entretanto, ao redigir Inveja e Gratidão em 1957, Klein (1957) traz o conceito de superego invejoso. Para a sua compreensão, gostaria de me remeter a concepção de inveja.
Para Klein “a inveja é uma expressão sádico-oral e sádico-anal de impulsos destrutivos, em atividades desde o começo da vida, e que tem base constitucional” (1957/2006, p. 207). A inveja, na concepção kleniana, remonta a relação arcaica com a mãe e ocorre entre duas pessoas, no intuito de destruir o seio bom. A inveja seria o sentimento raivoso de possuir o que a outra pessoa possui e desfrutar algo de desejável, levando ao impulso invejoso de tirar este algo ou de estragá-lo. A inveja está cerceada de voracidade, cercada pela ânsia impetuosa e insaciável que visa escavar completamente, sugar até secar o seio materno.
O objeto persecutório introjetado mais arcaicamente (o seio devorador, venenoso, persecutório, retaliativo) forma a base do superego invejoso. Este superego é sentido como perturbador, aniquilando as tentativas de reparação e de criatividade do ego, realizando exigências constantes e exorbitantes à gratidão do individuo. Neste circulo vicioso do superego invejoso, à perseguição soma-se os sentimentos de culpa de que os objetos internos persecutórios são frutos dos impulsos invejosos e destrutivos que estragaram o objeto bom.
Logo após descrever o superego invejoso, Klein (1958) sugere que o superego se desenvolve com as duas pulsões em um estado de fusão e que, segundo a nota editorial inglesa atrelada ao texto Sobre o Desenvolvimento do Funcionamento Normal, as figuras aterrorizantes não fazem “parte do superego” (1958/2006, p. 268). Estas figuras existem no inconsciente profundo, excindidas tanto do ego quanto do superego. E, ainda segundo esta nota, há uma estreita inter-relação entre o ego e o superego desde o início da vida. Mas como ocorre esta inter-relação? Vamos à vida pulsional do bebê.
Segundo Klein “o investimento libidinal do seio, juntamente com experiências gratificantes, constrói, na mente do bebê, o objeto bom originário” (1958, p. 272). Já a projeção de impulsos destrutivos, entrelaçados com a pulsão de morte no seio, constrói o objeto mau originário. A base da introjeção destes objetos formam o superego.
Para Klein “o superego antecede alguns meses o início do complexo de Édipo” (1958/2006, p. 273). As primeiras introjeções do seio bom e mau fundamentam o superego, influenciando o desenvolvimento do complexo de Édipo. Entretanto, o superego tem uma intrínseca relação com o ego. Para Klein:
O ego, sustentado pelo objeto bom internalizado e fortificado pela identificação com ele, projeta uma porção de pulsão de morte dentro daquela parte de si mesmo que ele havia excindido – uma parte que, dessa forma, passa a estar em oposição ao resto do ego e forma a base do superego (Klein, 1958, p. 274).
Juntamente com essas deflexões, partes tanto do objeto mau quanto do objeto bom são colocadas para dentro do superego. Consequentemente, o superego adquire qualidades protetoras, como também ameaçadoras.
Como o superego é fruto da introjeção do objeto originário, o superego mantém sua conexão com as demais partes do ego por ter introjetado aspectos diferentes “do mesmo objeto bom” (Klein, 1958/2006, p. 279), sendo este processo de introjeção de suma importância para a organização do ego.
Para Klein (1958), com a maior integração tanto do ego quanto do superego, a pulsão de morte será ligada, até certo ponto, pelo superego, influenciando os aspectos dos objetos bons contidos no superego, conduzindo esta instância a refrear os impulsos de ódio e impulsos destrutivos, como também a proteção do objeto bom, chegando até a proferir queixas, ameaças e perseguição.
Assim, o superego também está sob a influencia da pulsão de vida, empenhando-se em preservar o objeto bom, aproximando-se da mãe real da criança, mas também está embrenhado pela pulsão de morte, quando parcialmente a mãe torna-se aquela que frustra a criança, cujas proibições e acusações causam ansiedade. A função do superego seria liquidar ou controlar os impulsos destrutivos do bebê, “proteger seu objeto bom, bem como salvaguardar o bebê contra ansiedades persecutórias” (Klein, 1958/2006, p. 274). Neste momento, o superego poderá a vir despótico caso os impulsos destrutivos e de ansiedade foram despertadas.
Como citado no parágrafo acima, “na formação do superego há uma predominância da fusão das duas pulsões” (Klein, 1958, p. 275). Como o superego é estruturado em uma íntima relação com o ego, compartilhando diferenças do mesmo objeto, isso possibilita ao ego integrar e aceitar o superego. No início do período de latência, “a parte organizada do superego, apesar de frequentemente muito severa, está muito mais desligada de sua parte inconsciente” (Klein, 1958, p. 276). Neste momento, a criança lida com o superego projetando-o em seu ambiente externo, externalizando-o nas figuras que a rodeiam.
Além de mencionar essa projeção, Klein (1958) também ressalta o processo perturbador do superego na esquizofrenia, momento este em que o superego “se torna quase que indistinguível de seus impulsos destrutivos e de seus perseguidores internos” (Klein, 1958, p. 277). Nesta psicopatologia o superego torna-se esmagador, no qual parte do processo esquizofrênico é um desenvolvimento anormal do próprio superego, tornando-se indistinguível da maioria dos objetos aterrorizantes.
Se, de um lado, temos esse processo tão radical na esquizofrenia, por outro, a internalização do objeto originário possibilita as primeiras identificações ao bebê. Ao redigir o artigo Nosso Mundo Adulto e Suas Raízes na Infância, publicado em 1959, Klein (1959) ressalta que a mãe introjetada é um fator fundamental no desenvolvimento do bebê, uma vez que as relações de objeto iniciam-se no nascimento, sendo a mãe o primeiro objeto alvo da identificação.
Para Klein “uma forte identificação com a mãe torna fácil para a criança identificar-se também com um pai bom e, mais tarde, com outras figuras amistosas” (1959, p. 285). Conseqüentemente, o mundo interno da criança vem a conter objetos e sentimentos bons, já que o bebê sente que esses objetos respondem ao seu amor. Todavia, no quinto ou sexto mês de vida, o bebê começa a temer pelo estrago que seus impulsos destrutivos, entrelaçados com a sua voracidade, podem ter causado, vivenciando sentimentos de culpa e necessidade persistente de reparação. Assim, entre os movimentos de voracidade e reparação, a mãe e, posteriormente, as demais pessoas que estão presentes neste meio, são incorporadas ao self (a vida pulsional da criança), tornando a base das identificações favoráveis ou desfavoráveis.
Na constituição das identificações favoráveis ou não temos o papel do superego primitivo na remota infância. Em uma nota explicativa da comissão editorial inglesa adicionada ao artigo Uma Nota Sobre a Depressão no Esquizofrênico, de 1960, é ressaltado que o superego primitivo é o fator causal da ansiedade aguda nos casos de psicose [8]. Lembremos que esta idéia persiste até 1958, momento este em que Klein (1958) atribuía ao superego o papel das figuras aterrorizantes, característicos das psicoses. A partir de 1958, ela faz uma reclassificação, sugerindo que as figuras mais primitivas, aterrorizantes, não estão na etiologia do superego, mas estão presentes no inconsciente mais profundo, permanecendo à margem do desenvolvimento normal. Caso venha a ocorrer tensões, essas figuras mais aterrorizantes poderão infiltrar-se no ego e dominá-lo.
Neste artigo de 1960, Klein (1960) ressalta que, a partir da análise, o esquizofrênico poderia ter acesso aos aspectos de culpa e depressão mais profundos em seu inconsciente. Como em sua posição esquizo-paranoide podemos encontrar a ansiedade depressiva e a culpa devido ao objeto bom internalizado, isso demonstra que uma parte do seu ego é sentida como boa devido à internalização deste objeto. Entretanto, ao escrever o artigo Sobre a Saúde Mental (1960b) [9], ela ressalta uma outra característica da internalização do objeto bom, agora não mais na esquizofrenia, mas sim na saúde mental como um todo. Declara que “a internalização dos pais bons e a identificação com eles subjaz à lealdade para com as pessoas e causas e à capacidade de fazer sacrifícios por nossas convicções” (1960b/2006, p. 307). Assim, a saúde mental busca a adaptação ao mundo externo, procurando o equilíbrio para atravessar emoções penosas, como também lidar com elas.
E ao discutir sobre os papeis simbólicos das personagens na Orestéia, Klein faz um resgate do superego implacável. As freqüentes fobias das pequenas crianças tem sua etiologia no terror dos pais persecutórios introjetados, mesmo apresentando pais amorosos na vida externa. Klein (1963a) associa esse temor mediante a projeção do próprio ódio da criança nos pais, resgatando a concepção de Freud sobre a severidade do superego, quando diz: “ Freud, mais tarde, concordou com o meu conceito de que o ódio e a agressividade da criança, projetados nos pais, desempenham papel importante no desenvolvimento do superego” (1963b, p. 317). Essa concordância freudiana está em uma nota de rodapé acrescida ao Mal Estar na Civilização, quando Freud afirma “a severidade do superego que uma criança desenvolve, de maneira nenhuma corresponde à severidade de tratamento com que ela se defrontou” (Freud, 1930, p. 133). Logo abaixo, neste mesmo texto, em uma nota de rodapé, aponta: “como foi corretamente enfatizado por Melanie Klein e outros autores ingleses” (1930/1996, p. 133). Para Freud, na formação do superego, os fatores constitucionais inatos e influências do ambiente real estão atuando de forma combinada.
Segundo Klein (1963a/2006), no desenvolvimento do superego encontramos a internalização do objeto bom, envolvido pela ansiedade que leva a idealização deste objeto, repercutindo no desenvolvimento desta instância. Ressalto que, se no parágrafo acima, temos o superego associado ao texto Mal-Estar na Civilização, neste momento Klein associa-o ao texto O Humor (escrito por Freud em 1927), destacando como a atitude bondosa dos pais faz parte da formação do superego das crianças.
Klein faz uma associação do superego com a posição depressiva durante a tenra infância, a meninice e a vida adulta, destacando que “o superego faz-se sentir como consciência: ele proíbe tendências assassinas e destrutivas, e liga-se à necessidade da criança de orientação e de alguma limitação por seus pais reais” ( Klein, 1963a/2006, p. 318). O superego torna-se a base para a lei moral onipresente na humanidade. Em adultos normais, sob pressão interna e externa, os impulsos excindidos e as figuras persecutórias, perigosas, excindidas podem vir a reaparecer em alguns momentos, exercendo influência sobre o superego e causando ansiedades persecutórias, assemelhando-se aos temores dos bebês em sua tenra infância. Caso a posição depressiva seja bem elaborada, o superego poderá ser sentido como um guia e limitador dos impulsos destrutivos, mitigando um pouco da sua severidade.
De acordo com Klein “quando o superego não é excessivamente rigoroso, o individuo é apoiado e ajudado por sua influência, pois ele fortalece os impulsos amorosos e incrementa a tendência à reparação” (1963a/2006, p. 318). Esse abrandamento do superego poderia conduzir o ego a apresentar tendências criativas e construtivas em relação ao seu ambiente exterior.
No final da sua obra, Klein (1963) não altera a questão do superego primitivo, uma vez que é neste superego, com o seu caráter aterrorizador, que o bebê demonstra os impulsos cruéis e destrutivos. Esse superego demonstra sua garra quando a criança ataca a sua mãe por meio de fezes e urina, demonstrando, em suas fantasias, que está envenenando a sua mãe. Como conseqüência, este superego primitivo ameaça-a com a mesma destruição que atacou a sua mãe em suas fantasias. Nesta ida e vinda, Klein(1963) acrescenta as figuras danificadas na constituição do superego.
Para Klein há no superego “figuras danificadas e queixosas” (1963a/2006, p. 330). Temos também o aspecto de amor e de admiração aos pais, como também as figuras aterrorizadoras, fruto da projeção de fantasias destrutivas da criança em seus objetos externos, ligadas ao seu caráter primitivo. Estas figuras são contrabalanceadas pela relação com o objeto bom internalizado. Assim, a relação da criança com a mãe, e em grande medida com o pai, influenciam no desenvolvimento do superego, afetando a internalização dos pais. Caso os objetos internalizados danificados suscitem sentimentos de culpa, estes contribuem para a constituição do superego, embora possam atrapalhar a elaboração da posição depressiva.
Estes objetos danificados se referem, única e exclusivamente, a mãe, uma vez que, desde muito cedo, a mãe é sentida como um objeto danificado, internalizado pelo bebê. Este objeto danificado também faz parte do superego. Para Klein “a relação com este objeto danificado e amado inclui não somente culpa mas também compaixão, e é a fonte primeira de empatia pelos outros” (1963a/2006, p. 332).
Quando o superego apresenta uma função mais branda, representando o pai brando introjetado, isso representa um estágio em que a posição depressiva foi elaborada [10]. Mas como o superego se torna mais brando?
Caso o objeto bom estiver suficientemente estabelecido no bebê, este superego torna-se mais brando, uma vez que o impulso para a integração, que leva a diminuição do ódio pelo amor, é fortalecido. Esse superego brando exige o controle dos impulsos destrutivos, buscando um equilíbrio entre os sentimentos destrutivos e amorosos. Embora em uma forma mais branda, este é ainda capaz de produzir sentimentos de culpa.
Ao redigir o artigo Sobre o Sentimento de Solidão, trabalho póstumo publicado em 1963, Klein associa o superego severo com este sentimento. Para Klein “um superego severo nunca é sentido como desculpando impulsos destrutivos” (1963b/2006, p. 354). O superego exige que esses impulsos nem existam. Retomando a etiologia desta instância, Klein (1963) ainda aponta que o superego é construído a partir de uma porção excindida do ego. Neste meandro, este superego é influenciado pela introjeção dos pais reais e de sua relação com a criança. Quanto mais forte for o superego e a sua tirania, maior será o sentimento de solidão, uma vez que as exigências severas aumentam as ansiedades depressivas e paranoides da criança.
Para iniciar as conclusões, gostaria de retomar a problemática deste artigo: como podemos compreender a formação do superego a partir dos estudos sobre posição esquizoparanoide de Melanie Klein? Assim, ao longo de sua elaboração, a divisão em décadas possibilitou um olhar mais pedagógico para a construção desta instância.
Na década de 40 foi ressaltado que temos um superego arcaico formado por figuras devoradoras, cruéis, terroríficas, como também, em sua outra parte, há um superego arcaico, formado a partir do seio e do pênis bom internalizados. Assim, o seio mau e o pênis mau tornam-se os protótipos dos perseguidores internos e externos para a criança, influenciando na constituição do superego arcaico e no seu aspecto mau.
Por outro lado, nesta década, a concepção do superego para Klein é de extrema relevância para a compreensão das manifestações da culpa. Realizando um grande acréscimo a sua concepção da culpa presente na década de 30, Klein aponta que a ansiedade depressiva e a culpa já estão presentes nos meados da posição esquizo-paranoide, embora de uma maneira um pouco secundária, durante os estados de integração do ego. Assim, o surgimento da ansiedade depressiva está voltado à relação com os objetos parciais.
Caminhando uma década, na década de 50, Klein ressalta o superego e a culpa como os fatores determinantes para o declínio do complexo de Édipo, uma vez que as mudanças na estrutura do superego, conduzem ao declínio do complexo de Édipo no início do período de latência. Entretanto, o superego consiste de uma variedade de figuras construídas a partir das experiências e fantasias da criança, derivando dos estágios iniciais nos quais ela internalizou seus pais. Podemos encontrar, no núcleo do superego, a internalização de um seio danificado, temido, como também um seio que satisfaça a criança e que a auxilia. As figuras mais primitivas, aterrorizantes, não estão na etiologia do superego, mas estão presentes no inconsciente mais profundo, permanecendo à margem do desenvolvimento normal.
Por fim, na década de 60, em seus trabalhos póstumos publicados, o superego primitivo é apontado como o fator causal da ansiedade aguda nos casos de psicose (afirmação esta já presente em seus trabalhos da década de 20). Caso o objeto bom estiver suficientemente estabelecido no bebê, este superego torna-se mais brando, uma vez que o impulso para a integração, que leva a diminuição do ódio pelo amor, é fortalecido, reforçando assim os mecanismos reparatórios.
Assim, a partir das colocações mencionadas acima, este artigo espera ter esclarecido as principais contribuições de Klein para esta instância psíquica. Entretanto, ressalto que, ao contrário das críticas dos franceses, Klein nunca negou a herança de Freud, embora tenha contribuído de uma maneira impar para a compreensão da psicanálise no território britânico, ainda mais quando nos referimos a psicose e a análise infantil.
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1. Pós doutorando pelo Núcleo de Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Possui graduação em Psicologia pela Universidade Metodista de Piracicaba, mestrado e doutorado pela PUC-SP. email: henriquescatolin@gmail.com
2. Supervisora do estágio pos-doutoral. Possui graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Apresenta mestrado e doutorado em Psicologia Clínica por esta mesma instituição
3. Para Klein “a principal defesa contra a ansiedade na posição equizo-paranoide é a identificação projetiva” (1946, p. 18). Essa identificação permite construir as relações de objeto narcisistas características desta posição. O self cinde e projeta, para o exterior, partes não aceitas presentes em seu interior, que ocasionam grande ansiedade.
4. A nota editorial inglesa ressalta que “sua concepção final da posição esquizo-paranoide inclui ansiedades depressivas subsidiárias, o análogo de sua concepção de que a posição depressiva envolve também ansiedades paranoides” (Klein, 1946, p. 45)
5. Para Klein (1948) a ansiedade seria despertada pelo perigo ocasionado pela pulsão de morte que afronta o organismo.
6. Caso descrito no livro Psicanálise de Crianças e retomado na década de 50, no artigo A Técnica Psicanalítica Através do Brincar: sua História e Significado.
7. Gostaria de ressaltar que ao se remeter ao contexto da agressividade no texto Sobre a Identificação (1955), Klein associa a voracidade, a inveja e o ódio como os motores básicos das fantasias agressivas.
8. Essa idéia já estava presente no texto Personificação do Brincar nas Crianças, de 1929.
9. Segundo a nota da comissão editorial inglesa, no momento em que este artigo iria para o prelo, Klein morreu em Londres, especificamente no dia 22 de setembro de 1960. Após o seu falecimento foram publicados mais dois artigos de sua autoria: Algumas Reflexões sobre a Orestéia e Sobre o Sentimento de Solidão, ambos publicados em 1963.
10. Na posição esquizo-paranoide o superego apresenta uma rigidez retaliativa.