Introdução
Este trabalho pretende situar algumas contribuições de Álvaro Vieira Pinto e Darcy Ribeiro, publicadas durante as décadas de 1950 e 1960, e que hoje entendemos profícuas para trabalhar as relações entre tecnologia, desenvolvimento e cultura, que perpassam as sociedades contemporâneas na America Latina. Estes dois autores brasileiros desenvolveram, naquele período e nas décadas seguintes inovadoras reflexões não só sobre as relações entre sociedade, cultura, cidadania, espaço, desenvolvimento, educação e quotidiano, mas também sobre ciência e tecnologia.
Em particular, nos interessa fundamentar os viéses culturais, educacionais, das experiências vividas (Raymond Williams, 2005; e Edward P. Thompson, 1987), que perpassam a indissociabilidade das relações tecno-sociais nestes autores, com o intuito de ampliar a agenda e o embasamento daquilo que tem sido caracterizado como Pensamento Latino-americano em Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento, Estudos Sociais em Ciência, Tecnologia e Sociedade (ESOCITE), Pensamento Latino-americano em Ciência, Tecnologia e Sociedade (PLACTS) (Dagnino, et al.), ou simplesmente, Ciência Tecnologia e Sociedade(CTS) e suas extensões em prol da inovação e do meio ambiente (CTS+I/CTS+A) .
Em seus esforços de constituição de utópicas sociedades futuras, Darcy Ribeiro e Álvaro Vieira Pinto influenciaram pensadores de gerações seguintes em algumas áreas, como Paulo Freire, no caso da Educação. Autores recentes como Norma Côrtes (2003, 2005), Marcos Cezar de Freitas (2006), ambos envolvidos com a histórias das idéias, têm demonstrado a importância de uma reapreciação da obra de Vieira Pinto, embaraçada na controvérsia de suas recepções iniciais. Assim como tiveram admiradores, também tiveram críticos.
Postulamos neste texto que as implicações e os desdobramentos de seus trabalhos também precisam ser melhores compreendidos e explorados no contexto específico das pesquisas em Tecnologia e Sociedade. Argumentamos que ao reposicionar e reapreciar as contribuições destes dois autores naquele período, no fluxo histórico, contextualizando-as devidamente no âmbito dos múltiplos processos de constituição de uma região como a América Latina , em especial no que concerne as relações entre Cultura , Tecnologia e Desenvolvimento naquele período, poderemos ressaltar de maneira significativa a existência simultânea de combativas correntes de pensamento, reflexivas e não normativas, heterodoxas, as quais podem vir a trazer alguma luz sobre as texturas e os matizes com que vemos os atuais desdobramentos dos estudos e das políticas em Ciência e Tecnologia.
Como veremos, em meio a combates políticos intensos e de esforços de formulação de teorias compreensivas acerca do processo de desenvolvimento da nação brasileira, tanto Pinto como Ribeiro consideraram a percepção das relações entre tecnologia, cultura e desenvolvimento como fulcrais para a constituição de suas respectivas estratégias de persuasão acerca das políticas de construção da sociedade brasileira futura.
Nosso objetivo se limita a ilustrar modestamente como Álvaro Vieira Pinto e Darcy Ribeiro também se dedicaram à tecnologia e a cultura material como parte dos processos sociais, e apontar como seria profícuo resgatar suas visões para o atual desenvolvimento de nossa área de pesquisa. É com este objetivo restrito que analisaremos apenas algumas das obras produzidas por Álvaro Vieira Pinto e Darcy Ribeiro. Do primeiro, nos deteremos especialmente, naquelas que produziu durante o seu período de atuação no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), entre 1956 e 1964, mais especificamente Ideologia e Desenvolvimento Nacional (Pinto, IDN, 1956) e Consciência e Realidade Nacional: a consciência ingênua (Pinto, CRN, 1960), com ligeiras referências a Ciência e Existência (Pinto, CE, 1967). Já alertamos que não incluímos suas obras publicadas postumamente onde discorre sobre o conceito de tecnologia (Pinto, 2005), ou sobre a sociologia dos países subdesenvolvidos (Pinto 2008), pois entendemos que em suas obras iniciais, e na literatura de base que as discutem, ou resgatam, já estão presentes argumentos suficientes para apontar sua relevância. Da obra de Darcy Ribeiro, analisaremos especialmente, o livro O Processo Civilizatório (Ribeiro, PC, 1968). Este já tem uma obra bem mais difundida e conhecida, mas podemos dizer que argumento similar pode ser equacionado naquilo que concerne as relações socio-técnicas.
Partimos do materialismo cultural, como formulado por Raymond Williams (2003, 2005), pois este nos permite enfrentar a complexidade das relações entre transformações tecnológicas e processos sociais de re/significação, presentes nas obras analisadas. Estas relações são percebidas dentro de uma totalidade, ou seja, dentro da percepção de que “a sociedade é efetivamente composta de um grande número de práticas sociais que formam um todo concreto onde estas práticas interagem e se combinam de formas complexas” (Cevasco, 2001, p. 145).
Portanto, os textos selecionados serão abordados como produções culturais que se constituem não apenas em reflexos e reproduções de determinadas formações sociais, mas também, como processos de criação e constituição de significados e valores. Roger Silverstone (Williams, 2003, p. XI), ao comentar as relações presentes entre Tecnologia e Sociedade na obra Television, afirma que para Williams, “as tecnologias podem constranger mas elas não determinam. As rotas que seus desenvolvimentos seguem são marcadas por interesses em competição, lutas sobre significados, e as consequências não intencionadas e sem limites da ação humana”, podendo levar a novas formas de expressão, inclusive políticas.
Isto, convém ressaltar, está alinhado com a perspectiva que temos trabalhado em nossas pesquisas e reflexões, que realçam as implicações e os desdobramentos das tecnologias no quotidiano das sociedades, em suas experiências vividas, circunstanciadas e situadas historicamente, em suas particularidades e diferenças locais e temporais. A agenda por trás deste nosso texto reside justamente em trazer a tona o caráter cultural da tecnologia no quotidiano, na cultura material, na comunicação, elementos que muitas vezes são abstraídos em textos sobre Ciência e Tecnologia. Também esclarecemos, em parte reforçando o que já dissemos, que as discussões propostas interagem com as nossas próprias práticas sociais, pois além de atuarmos em um programa de pós graduação interdisciplinar em tecnologia e sociedade, onde os estudos das relações entre tecnologia e cultura são valorizados, a relevância destas questões são frequentemente explicitadas em nosso contato com movimentos sociais como os das tecnologias livres e do livre acesso ao conhecimento, ou ainda, nas reflexões sobre temáticas tão diversas como as utopias tecnológicas. Neste sentido, a discussão, neste trabalho, procura conscientemente abrir espaços para uma temática emergente no campo de estudos em Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS): tecnologia e cultura.
Em busca das árvores em meio a um bosque chamado PLACTS
Este trabalho pretende contribuir para continuidade do processo de compreensão da constituição do, assim chamado “Pensamento Latino-Americano em Ciência, Tecnologia e Sociedade” (PLACTS) por Dagnino,Thomas e Davyt (1996) nas décadas de 50 e 60. Trabalhos fundamentais para os estudos CTS como o de Dagnino, Thomas e Davyt (1996) e o de Kreimer e Thomas (2004) procuraram refletir sobre as tendências gerais deste pensamento enfatizando seus principais desenvolvimentos.
Em viés e escopo diversos destes trabalhos, no lugar de realizarmos um “vôo de pássaro”, vendo os bosques sem nos determos nas árvores, como na metáfora proposta no artigo de Dagnino, Thomas e Davyt (1996), nos aventuraremos apenas por umas poucas trilhas destes bosques, reunindo as folhas caídas, fragmentos de árvores específicas, analisando, portanto, fenômenos particulares, no nosso caso os pensamentos destes dois autores brasileiros, já nomeados. Consideramos que estes dois pensadores tem grande potencial de dialogo com as características gerais do PLACTS, seja (a) ao combaterem o modelo linear de inovação; (b) ao enfatizarem “aspectos históricos e políticos que explicavam a gênese dialética da situação então existente” (Dagnino, Thomas, Davyt, 1996), (c) ao relativizarem o papel da ciência e ressaltarem o direcionamento “utilitário que deveria presidir seu desenvolvimento” (Dagnino, Thomas, Davyt, 1996), mas também (d) ao se oporem ao discurso tecnocrático e cientificista de certos setores sociais; (e) ao proporem diversos “futuros desejados”, onde a ciência e a tecnologia serviriam como instrumentos de consolidação de uma sociedade socialista como no caso de Darcy Ribeiro, (f) ou inclusive como uma estratégia de desenvolvimento nacional, como no caso de Álvaro Vieira Pinto. Porém, como são autores que poderiam ser classificados como dentre aqueles que tiveram menor impacto no plano político-econômico ao defenderem “visões mais idealistas que propunham um desenvolvimento tecnológico, sejam mais 'humanistas' ou mais funcionais para a reestruturação das relações sociais de produção” (Dagnino, Thomas, Davyt, 1996, p. 21), podemos com preender, nesta perspectiva, que suas contribuições ao campo CTS terem sido tão pouco relevadas, apesar da importância amplamente reconhecida e constantemente reavaliada de seus pensamentos por outras áreas acadêmicas, como a filosofia, a educação, a antropologia e a política. Talvez, isto se deva a característica apontada por Kreimer e Thomaz (2004, p. 26), de que na “medida que os protagonistas do PLACTS exercitaram uma crítica ligada com a ação, a dimensão “de políticas”, cientifícas e tecnológicas, “tendia a prevalecer por sobre as outras”. É nosso objetivo, demonstrar que apesar de sua importância aparentemente relativa para políticas estritas em Ciência e Tecnologia (C&T), Ribeiro e Vieira Pinto, a exemplo de outras vozes a discutirem ciência e tecnologia na América Latina nas décadas de 1950 e 1960, apresentam criativas elaborações conceituais sobre a construção cotidiana das visões sociais sobre as relações entre trabalho, tecnologia, cultura e desenvolvimento.
Uma Tentativa de Contextualização: desenvolvimentismo e conflitos em muitos matizes
Nesta breve contextualização pretendemos situar dois projetos sociais para o Brasil, que durante as décadas de 1950 e 1960, apesar de fundados no solo comum do nacionalismo, apresentaram diferenças significativas: o nacional desenvolvimentismo e o nacionalismo econômico. Esta discussão sobre as relações entre desenvolvimento e nacionalidade reveste-se de especial importância, pois, para Freitas (1998, p. 23) estas décadas foram marcadas pelo desejo de interpretação da realidade nacional, caracterizado por “um chamamento à economia (porque ciência) ao dever de explicitar os vínculos entre o complexo cultural do país e a história do desenvolvimento nacional”. Neste sentido reflexões como aquelas desenvolvidas na Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), criada em 1948, pelo Conselho Económico e Social das Nações Unidas, e no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), criado em 1955 e vinculado ao Ministério de Educação e Cultura , e extinto em 1964, apenas duas semanas após o golpe militar de 1964 , seriam elementos fundamentais para a história das idéias do período. Conceitos e temáticas cepalinas, como “centro e periferia”, “desenvolvimento e subdesenvolvimento”, “atualização histórica”, ”atraso e avanço” e especialmente o desejo de constituição de uma ciência econômica capaz de intervir na realidade político-social (Freitas, 1998.p. 57), fariam parte do estoque de idéias disponíveis e necessariamente confrontadas por autores como Ribeiro e Vieira Pinto.
Álvaro Vieira Pinto escreveu as duas obras aqui analisadas , quando membro do ISEB, centro de elaboração e difusão do nacional desenvolvimentismo (Toledo, 2005). Na literatura que se dedica a história intelectual, encontram-se reapreciações recentes e bastante detalhadas do trabalho desenvolvido por Álvaro Vieira Pinto, como Cortês (2006) e Freitas (1998 e 2006). Segundo Cortês, o trabalho de Toledo (2005) “honra a história do ISEB […] atualiza as tradições e dá visibilidade às metamorfoses ocorridas no interior desse intenso e longevo conflito de interpretações sobre a realidade brasileira” (Cortês, 2006, p. 212-3). Cortês também resgata e reforça que já na inauguração do ISEB, Vieira Pinto realçava a perspectiva democrática daquele instituto “afirmando que a fonte da inteligibilidade da realidade nacional não reside no conhecimento de uma elite intelectual, mas repousa nos saberes ordinários dos homens comuns” (2005, p. 124). É esta perspectiva, respeitosa do quotidiano e da localidade, que postulamos importante para os estudos CTS.
Não é novidade que a recepção do trabalho dos participantes do ISEB foi bastante controversa. Isto talvez nos dê mais pistas de sua pouca difusão nos estudos em ciência e tecnologia, de outrora e contemporâneos. Cortês indicaria a originalidade deste pensamento:
Com efeito, em vez de se indagar pela brasilidade tentando encontrar qualquer princípio ontológico que definisse a quintessência substantiva ou a alma do Brasil, Vieira Pinto abandonou o problema do caráter nacional e afirmou que a realidade da nação é uma conquista histórica perene a ser realizada dialógica e temporalmente (Cortês, 2005, p. 129).
Darcy Ribeiro, por sua vez, além de ter sido marcado intelectualmente pela mesma circulação de discursos, participou indiretamente do governo JK (Juscelino Kubitschek de Oliveira [1902-1974], presidente do Brasil entre 1956 e 1961), por meio do auxílio à elaboração da meta 30 sobre educação, voltada a formação de pessoal técnico por meio da educação para o desenvolvimento, além de ter sido responsável pela elaboração do projeto da Universidade de Brasília. Suas práticas políticas durante o governo João Goulart ([1919 – 1976], presidente do Brasil entre 1961 a 1964) e suas manifestações durante o período autoritário posterior, podem ser consideradas como exemplares de um certo nacionalismo econômico.
Para Paulo Vizentini, a década de 50, foi marcada pelo processo de “desenvolvimento industrial através da substituição das importações”, com o fortalecimento da indústria de base. (Vizentini, 2008, p. 203). Este “processo de industrialização, urbanização e democratização”, (Moreira, 2008, p. 166) foi acompanhado de uma forte ascensão da participação das “massas populares e segmentos médios” (Vizentini, 2008, p.203) no processo de redemocratização brasileiro, iniciado em 1946.
Foi também, neste período que ocorreu a consolidação do nacional-desenvolvimentismo “como um projeto social e político para o Brasil, cujos traços essenciais eram o compromisso com a democracia e com a intensificação do desenvolvimento industrial de tipo capitalista” (Moreira, 2008, p. 159). É neste contexto que surge o ISEB em 1955 com a missão de elaboração e propaganda do nacional desenvolvimentismo. A constituição de uma ideologia do desenvolvimento nacional era considerada primordial por Roland Corbisier (1914-2005), quase nos mesmos termos, que como veremos, foi utilizada por Álvaro Vieira Pinto, ao afirmar que, “não haverá desenvolvimento sem a formulação prévia de uma ideologia do desenvolvimento nacional” (apud Moreira, 2008, p. 163).
Para Moreira, dois traços comuns na ideologia desenvolvimentista isebiana podem ser ressaltados; o termo “nacional desenvolvimentismo” era praticamente sinônimo do projeto de industrialização e de ocultamento das dimensões e contradições de classe, presentes neste projeto (Moreira, 2008, p. 165). Ofereciam-se em troca, como no caso de Álvaro Vieira Pinto, novos focos que pudessem unificar as classes sociais em torno de objetivos comuns, como a luta pela superação do subdesenvolvimento. Entretanto , Álvaro Vieira Pinto também é exemplar do exercício da autonomia por vários intelectuais ligados ao ISEB, e que gradualmente se insurgiram contra as práticas políticas do governo JK, especialmente no que se refere a permissividade de entrada do capital multinacional, e aos fortes limites apresentados às metas sociais, no que foi denominado por Vizentini (2008, p. 206) de desenvolvimentismo associado, aproximando suas teses daquelas defendidas pelo nacionalismo econômico. Neste sentido, acaba refletindo, em certa medida, a própria lógica do movimento popular nacionalista que evoluiu no período, para uma ênfase anti-imperialista (Vizentini, 2008, p. 204).
Antes disto, durante o governo JK, mas de maneira ainda mais incisiva durante o governo João Goulart, a ideologia do nacionalismo econômico desenvolveu-se como contraponto ao desenvolvimentismo. Se havia uma convergência aparente de ideais nas duas correntes, sobre a necessidade do processo de industrialização e do caráter nacionalista de ambos os projetos, os setores mais radicais do nacionalismo econômico consideravam que o processo de modernização da sociedade brasileira deveria ser acompanhado, por “reformas profundas no sistema político-eleitoral, na administração do estado, na estrutura agrária, na educação e nas relações internacionais” (Moreira, 2008, p. 167).
Se o projeto nacional desenvolvimentista, na sua prática social, acabou reunindo interesses aparentemente contraditórios entre a burguesia nacional, especialmente a industrial e a oligarquia rural, beneficiada diretamente pela modernização da produção no campo e pela expansão conservadora das fronteiras agrícolas, o projeto nacionalista econômico ao defender a expansão dos direitos dos cidadãos através das reformas de base e ao combater diretamente os interesses oligárquicos por meio da proposta de reforma agrária e opondo-se decisivamente ao capital internacional, constituiu-se em um projeto de crescente apoio popular em oposição a importantes interesses dominantes. O governo João Goulart foi o espaço-tempo de maior vigor deste projeto, e que teve em Darcy Ribeiro, ministro da Educação e depois chefe de gabinete da presidência, um dos maiores defensores das reformas. |