Renato Dagnino1
RESUMO: Ao contrário de outras áreas de política pública, aonde a esquerda brasileira e latinoamericana vem conformando um modo novo de governar que vai construindo um estilo alternativo de desenvolvimento sócio-economico, a de C&T permanece ainda no passado. O propósito deste trabalhomuito ambicioso e, para alguns, pouco academico- é resgatar a C&T da“neblina ideológica” em que antes estuveram tantas outras áreas de política pública e propor acoes que a coloquem numa situacao coerente com seu poder alavancador desse estilo alternativo. Seu foco é o nível local, ou municipal, ate agora ainda pouco tratado pelos pesquisadores dos estuudos sociais da C&T. |
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ABSTRACT:
Contrary to other areas of public policy, where the brazilian and latinamerican left are conforming a new way to govern under an alternative style of socioeconomic development, the area of science and technology remains tied to the past. The purpose of this paper very ambitious and for some, little academic- is to rescue S&T of the “ideological fog” in which so many other areas of public polices where before and to propose actions that place it in a situation coherent with the impelling power of that alternative style. The focus of this work is at local level, which has been rarely studied by researchers of social studies of S&T.
Ao contrário de outras áreas de política pública, aonde a esquerda brasileira e latino-americana vem conformando um modo novo de governar que vai construindo um estilo alternativo de desenvolvimento sócio-econômico, a de C&T permanece ainda no passado. O propósito deste trabalho muito ambicioso e, para alguns, pouco acadêmico - é resgatar a C&T da “neblina ideológica” em que antes estiveram tantas outras áreas de política pública e propor ações que a coloquem numa situação coerente com seu poder alavancador desse estilo alternativo. Seu foco é o nível local, ou municipal, ate agora ainda pouco tratado pelos pesquisadores dos Estudos Sociais da C&T, mas que para os que se interessam na elaboração de políticas publicas que possam incidir “onde as coisas acontecem” (ou impactam diretamente a população) é fundamental.
O patamar do qual se tem que partir é muito inferior ao existente em outras áreas, aonde um longo processo de acúmulo de reflexão e discussão foi gerando um pensamento alternativo e rompida a “neblina ideológica” que as cercava. Foi saindo do vale enevoado que a esquerda chegou ao meio do caminho, foi capaz de perceber o quanto já se havia afastado da neblina, escolher a melhor maneira de chegar ao pico, e transformar esse pensamento em ações de governo nas instâncias que foi pouco a pouco controlando.
Partir desse patamar, que se poderia denominar “pré-neblina”, uma vez que são ainda escassas as manifestações críticas a respeito, obriga a um longo e arriscado caminho. Ele deixa a muitos temerosos e a todos impacientes, mas deve ser percorrido em marcha forçada porque disso depende a produção do conhecimento necessário para construir o futuro que se deseja.
Ele se inicia pela desconstrução do pensamento hegemônico, do substrato analítico-conceitual e do marco institucional da PCT em curso. Apesar de terem sido construídos pela direita ao longo de mais de dois séculos, a favor da corrente conformada pelo modo de produção capitalista - sua base econômico-produtiva, e sua superestrutura ideológica - e junto com a ciência e a tecnologia que com ele se foram entremeando, esses três elementos do pensamento hegemônico terão que ser rapidamente desconstruídos. Mitos muito caros a quem insiste em dizer que o conhecimento só pode sair da universidade e chegar à sociedade através da empresa privada; que é aquilo que imitativamente entendem por a “alta tecnologia” o que irá desenvolver o País; que só pode existir uma ciência a verdadeira, neutra e universal ; e que a construção de um conhecimento que sirva a um outro projeto é heresia, serão deixados para trás neste longo e arriscado caminho.
Iremos do geral/ideológico/internacional/teórico-programático para o particular/político/ nacional/municipal/prático, abordando sucessivamente nas seções que se seguem:
Coerentemente com o caráter das questões que levanta e com o interesse que espera satisfazer mais próximo do debate político do que da reflexão acadêmica - este trabalho não inclui nenhuma referência bibliográfica. Não será difícil para o leitor acostumado com os Estudos Sociais da C&T rastrear muitas das idéias que ele contém.
Este item pode ser entendido como uma tentativa de responder, no plano da PCT, a uma pergunta que a muitos preocupa: o que fazer para construir o «estado necessário», um estado que possa alavancar o atendimento das demandas da maioria da população e projetar os países da América Latina numa rota que leve a estágios civilizatórios sempre superiores? Por isto, e embora a abordagem que ele propõe esteja limitada ao campo da PCT ou de Inovação, buscamos situá-la num contexto mais amplo.
A resposta a essa pergunta demanda, em primeiro lugar, que se identifiquem as características do Estado que herdamos do período autoritário, que sucedeu ao nacional-desenvolvimentismo e antecedeu o seu desmantelamento pelo neoliberalismo. Para fazê-lo, parece necessário reconhecer que, mais além das referências ideológicas, a combinação que herdamos, de um Estado que combinava autoritarismo com clientelismo, hipertrofia com opacidade, insulamento com intervencionismo, deficitarismo com megalomania, não atende nem ao projeto da direita nem ao projeto da esquerda latino-americana.
O final do autoritarismo deu início a um processo de democratização política, que tende a possibilitar um aumento da capacidade dos segmentos marginalizados de veicular seus interesses, levando à expressão de uma demanda crescente por direitos de cidadania. À medida que este processo avançar, aumentará ainda mais a capacidade desses segmentos de pressionar, pela satisfação de suas necessidades não atendidas por bens e serviços - alimentação, transporte, moradia, saúde, educação, comunicação etc. - e, com isso, a demanda por políticas públicas capazes de promover seu atendimento.
É o que tem sido chamado de cenário tendencial da democratização. Para satisfazer essas necessidades sociais com eficiência, e no volume que temos em países como o Brasil, será necessário «duplicar o tamanho» dessas políticas (ou, mais precisamente, do volume de recursos envolvidos e impactos esperados) para incorporar os 50% da população hoje desatendida. Se não for possível promover um processo de transformação do Estado que herdamos em direção ao «Estado necessário» que permita satisfazer necessidades sociais represadas ao longo de tanto tempo, o processo de democratização pode se ver dificultado e até abortado, com uma fatal esterilização de energia social e política. É claro que para satisfazer àquelas demandas, o ingrediente fundamental, que não depende diretamente do Estado, é uma ampla conscientização e mobilização políticas que, se espera, ocorra sem um custo social maior do que o que esta sociedade vem pagando.
É verdade que a correlação de forças políticas, que sanciona uma brutal e até agora crescente concentração de poder econômico, muito pouco espaço deixa para que uma ação no sentido de disponibilizar conhecimento, que possa levar à melhoria das políticas públicas e da eficiência da máquina do Estado contribua para alavancar o processo de democratização. Mas também é verdade que como esse espaço irá se ampliando à medida que a democratização avance e a concentração de renda, que hoje asfixia nosso desenvolvimento e penaliza a sociedade, for sendo alterada, este conhecimento poderá fazer toda a diferença. Isto é, talvez ele venha a ser o responsável por se alcançar ou não a adequação sócio-técnica e a governabilidade necessária para tornar materialmente sustentável o processo de mudança social que se deseja.
A democratização política está levando a um crescimento exponencial da agenda de governo; a erupção de uma infinidade de problemas que, em geral, demandam soluções específicas e criativas, muito mais complexas do que aquelas que o estilo tradicional de elaboração de políticas públicas - homogeneizador, uniformizador, centralizador, tecnocrático, típico do Estado que herdamos - pode absorver.
A maneira como tradicionalmente se definia e caracterizava os problemas que o Estado deveria tratar ficava restrita ao que a orientação ideológica e o pensamento político conservador dominante eram capazes de visualizar. A explicação dos mesmos estava constrangida por um modelo explicativo que, de um lado tendia à quase monocausalidade e, de outro, a soluções genéricas, universais. Isso levou ao estabelecimento de um padrão único causa - problema - solução no qual, embora fosse percebida uma certa especificidade nos problemas enfrentados, o fato de que segundo o modelo explicativo adotado, sua causa básica era a mesma, terminava conduzindo à proposição de uma mesma solução.
As demandas que o processo de democratização política irá cada vez mais colocar, e que serão filtrados com um viés progressista por uma estrutura que deve celeremente se aproximar do «Estado necessário», originarão um outro tipo de agenda política. Serão muito distintos os problemas que a integrarão e terão que ser processados por este Estado em transformação. Eles não serão mais abstratos e genéricos, serão concretos e específicos, conforme sejam apontados pela população que os sente, de acordo com sua própria percepção da realidade, com seu repertório cultural, com sua experiência de vida, freqüentemente de muito sofrimento e justa revolta.
Da mesma forma que é pertinente a idéia de que não pode ser deixada de lado na PCT, a necessidade de tomar mais eficiente o modo como se gastam os recursos disponíveis, parece pouco discutível a afirmação de que a mera adoção de estratégias de reengenharia institucional será incapaz de alterar o status quo. Em outros termos: as propostas centradas na «otimização da qualidade de gestão’’, são pró-inerciais e, portanto, inúteis para redirecionar para objetivos políticos e sociais alternativos os complexos sistemas sociais locais de interação entre ciência, tecnologia e sociedade.
O fato apontado, relativo à escassa reflexão existente, contribui para explicar porque, apesar das numerosas experiências falidas de reforma institucional acumuladas na região durante a década passada, ainda se continue buscando implementar estratégias baseadas na otimização da gestão. Rejeitar essas iniciativas, que alem de se terem mostrado pouco eficazes podem ser inclusive contraproducentes, demanda a proposição de cursos de ação alternativos para conceber uma PCT capaz de reforçar e consolidar processos de democratização política e econômica.